A usucapião, enquanto forma de aquisição originária da propriedade, é um instituto jurídico que traz consigo várias nuances no contexto familiar, especialmente quando se trata da relação entre o possuidor casado e o bem cuja posse foi adquirida antes do matrimônio.
Diante disso, surge uma questão fundamental: é possível que o possuidor casado requeira, em nome próprio, a usucapião com base na posse iniciada antes do casamento?
O primeiro ponto a ser considerado é a natureza da posse e o marco inicial da contagem do prazo para a usucapião, o exercício da posse e o regime de bens.
Para que a usucapião seja reconhecida, é necessário que o possuidor detenha a posse mansa e pacífica, ininterrupta e com ânimo de dono por um determinado período, conforme a modalidade da usucapião (ordinária, extraordinária, especial, etc.).
Se a posse foi adquirida antes do casamento sob regime da comunhão parcial, ela pertence exclusivamente ao possuidor que a iniciou, mesmo sendo requerida a usucapião após o casamento, exceto se houver uma interrupção desse vínculo possessório ou a modificação de seu caráter, consoante previsto no Código Civil/2002, a saber:
Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.
O regime de bens adotado no casamento determinará sobre a comunicabilidade da posse. No regime de comunhão parcial de bens, por exemplo, os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento se comunicam entre os cônjuges, salvo exceções legais.
No entanto, a posse de um bem adquirida antes do casamento ou por herança não se comunica automaticamente, permanecendo a titularidade exclusiva do possuidor original.
Isso significa que, mesmo após o casamento, a posse anterior não se torna um bem comum do casal. O cônjuge possuidor pode, portanto, requerer a usucapião em nome próprio, desde que cumpra os requisitos legais e que essa posse continue sendo exercida com ânimo de dono e de forma independente.
No contexto familiar, poderá dificultar ou obstar o requerimento exclusivo se o casal exercer posse conjunta sobre o imóvel objeto da usucapião com a realização de obras, benfeitorias e acessões mediante esforço comum do casal.
Em regra, o cônjuge que não detinha a posse anterior ao casamento não deverá figurar no polo ativo da ação/procedimento de usucapião. No entanto, ele poderá ser chamado a manifestar no processo para esclarecer questões ligadas à comunicação da posse ou apenas para dar seu consentimento.
Tendo a usucapião a classificação de ação real, atrai para si a regra encampada no artigo 73, do CPC/2015, vejamos:
Art. 73. O cônjuge necessitará do CONSENTIMENTO do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens.
Para COUTO (2021, p. 147),
O provimento 65/2017 do CNJ, apesar de não arrolar expressamente a necessidade de outorga do consentimento conjugal, nas hipóteses em que o requerimento seja feito por apenas um dos cônjuges, deixa clara a sua necessidade, ao consignar que, apenas no caso de separação absoluta de bens, o consentimento é dispensado.
Destaca ainda que, “no caso de o requerimento ser feito em nome de apenas um dos cônjuges deve fiar clara a questão da comunicabilidade ou não do bem”.
PAIVA (2023, p.122), por sua vez, ensina que,
No caso de ser o requerente casado, há de se recordar a regra do artigo 73 do Código de Processo Civil, que exige vênia conjugal para a propositura de ações que versem sobre direito real imobiliário, salvo no regime de separação absoluta de bens. Entende-se que a regra deve se estender ao procedimento extrajudicial, por um imperativo de segurança dos registros públicos. Caso contrário, poderia haver prejuízos para o outro cônjuge, como na hipótese de ele ser compossuidor e tal circunstância não constar do requerimento ou da ata.
Em muitos casos, o cônjuge que não possui titularidade pode ser ouvido como parte interessada ou como testemunha, a fim de esclarecer a natureza da posse durante a constância do casamento. O importante é que o cônjuge possuidor demonstre que a posse original não foi alterada ou compartilhada de maneira que impeça o reconhecimento da usucapião.
Considerações Finais
A possibilidade de o possuidor casado requerer, em nome próprio, a usucapião sobre a posse adquirida antes do casamento é juridicamente viável e encontra respaldo tanto na doutrina quanto na jurisprudência. A posse, enquanto um direito distinto da propriedade, não se comunica automaticamente com o outro cônjuge, desde que seja anterior à união e mantida em caráter exclusivo.
O casamento, por si só, não altera o direito originário de posse, permitindo que o cônjuge que adquiriu essa posse anteriormente possa reivindicar a usucapião, cumprindo os requisitos legais. Contudo, é essencial que o possuidor esteja atento à continuidade da posse, à ausência de interrupção e à ausência de oposição por parte do cônjuge ou terceiros.
Referências Bibliográficas:
• COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho. Usucapião Extrajudicial. 4ª ed. Salvador: JusPodvm, 2021.
• PAIVA, João Pedro Lamana; KÜMPEL, Vitor Frederico; VIANA, Giselle de Menezes. Usucapião extrajudicial: aspectos civis, notariais e registrais. 3ª ed. São Paulo: YK Editoria, 2023.
• Lei n. 13.105, de 16 de Março de 2015 – Código Processo Civil.